Deus havia decretado o fim do exílio de seu povo e quis, em seus insondáveis desígnios, servir-se de um rei pagão para aplicar sua misericórdia, assim como assim como se servira de outro para castigá-lo
Segundo conta Heródoto, no século VI a.C., um rei medo teve um misterioso sonho assim interpretado pelos sacerdotes: seu neto recém- -nascido, já adulto, derrubá-lo-ia do trono. Tomando a visão por um presságio, mandou assassinar o menino. Mas, após passar por uma série de peripécias, este acabou escapando da morte. Cresceu, tornou-se um valente guerreiro e, conforme o sonho profético, venceu o avô em batalha, tomando-o prisioneiro.
Tal relato, como muitos daquela remota época, mistura o mito e a realidade. No entanto, mostra bem a figura desse personagem, que, ao tomar o trono medo, abria uma nova etapa na História da Antiguidade. Seu nome era Ciro II, o Grande.
Origem do reino dos medos
Para melhor nos ambientar em nossa narração, convém recuarmos até a primeira metade do segundo milênio antes de Cristo. Naquele tempo, o grande planalto situado desde o Monte Ararat até a Índia era habitado por um povo guerreiro e rude, proveniente da Ásia Central: os arianos. De língua indo-europeia, estava ele dividido em numerosas tribos, algumas das quais se deslocaram em direção à Síria e à Mesopotâmia, enquanto outras se dirigiram para o norte do atual Afeganistão.
Já no século IX, uma dessas tribos arianas entrou em choque com o rei assírio Salmanasar III. As hostilidades estenderam-se até o século seguinte, com Sargon II, que finalmente conseguiu submetê-la. Porém, ela logo recuperou a independência e, cem anos depois, sob a chefia de Deioces tomou a forma política de monarquia. Havia nascido o reino dos medos.
A vida política e militar desse povo será consolidada pelo neto de Deioces, Ciáxares, contemporâneo do famoso soberano caldeu Nabucodonosor, do qual nos fala com profusão o Antigo Testamento.1
Nova forma de tratar os vencidos
Com a morte de Ciáxares, em 585 a.C., herdou o trono dos medos seu filho Astíages, avô de Ciro por via materna, ao qual nos referimos no início deste artigo. Seu império se estendia por um território de consideráveis dimensões, compreendendo a Capadócia, o Ponto, a Armênia e boa parte do atual Irã, e incluía o domínio sobre outra tribo ária: a dos persas.
Pondo-se à frente desta tribo, Ciro conseguiu libertá- -la do jugo medo, no ano 555 a.C., e, atraindo outros povos vizinhos, formou com eles uma federação, da qual passou a ser o chefe. Começou então uma luta de cinco anos, finalizada com a derrota de Astíages. No reinado de Ciro, passam a ser o povo dominador e os medos, o dominado.2 Iniciava-se o futuro Império Persa.
Ora, um traço inédito na época vai marcar a vitória de Ciro: não só poupou a vida do rei derrotado, mas o fez viver na corte colmado de honras.
Assírios e babilônios haviam fundado seus impérios com base no esmagamento dos povos vencidos. Ciro, ao contrário, ensinou ao mundo como governá-los com outros métodos distintos aos da violência. E quando ele caiu, na luta contra os
bárbaros do Oriente, em 529 a.C., desapareceu um soberano como não se tinha visto até então, e como não se veria por muito tempo.
Acrescentando pela força das armas novos territórios aos que recebera de Astíages, Ciro fundou um império superior em extensão não só ao do Egito, mas também ao assírio-babilônio. Da Palestina até o Paquistão, todo o mundo jazia aos seus pés. Contudo, tributou respeito aos inimigos derrotados, tratando com tolerância suas instituições e seus sentimentos religiosos. “Um espírito completamente novo tinha penetrado no governo do mundo”.3
“Fui Eu quem suscitou Ciro”
Não foram, entretanto, os triunfos militares de Ciro ou seus dotes de governante que nos levaram a falar dele neste artigo, mas o fato de ter ele sido escolhido por Deus para uma missão ímpar, assim anunciada por Isaías:
“Eis o que diz o Senhor a Ciro, seu ungido, que Ele levou pela mão para derrubar as nações diante dele, para desatar o cinto dos reis, para abrir- -lhe as portas, a fim de que nenhuma lhe fique fechada: ‘Irei Eu mesmo diante de ti, aplainando as montanhas, arrebentando os batentes de bronze, arrancando os ferrolhos de ferro. Dar-te-ei os tesouros enterrados e as riquezas escondidas, para mostrar-te que sou Eu o Senhor, Aquele que te chama pelo teu nome, o Deus de Israel. É por amor de meu servo, Jacó, e de Israel que te escolhi, que te chamei pelo teu nome, com títulos de honra, se bem que não Me conhecesses'” (Is 45, 1-4).
Desta forma, o grande Ciro, pagão e politeísta, entra pela mão do Altíssimo na história do povo de Israel, com a missão de reconduzir a Jerusalém os judeus exilados: “Fui Eu quem, na minha justiça, suscitou Ciro, e quem por toda parte lhe aplaina o caminho; e é ele quem fará reedificar minha cidade e libertar meus deportados, sem recompensa nem dádivas, diz o Senhor dos exércitos” (Is 45, 13).
“Pela primeira vez na história do povo eleito, um oráculo favorável de Deus dirige-se a um rei estrangeiro dando-lhe o título de ungido”4, concluem Schökel e Sicre Diaz, biblistas contemporâneos.
Conquista da Babilônia
Com a morte de Nabucodonosor II, o rei que levara o povo judeu para o cativeiro, o império babilônio entrou na sua fase de declínio. Três monarcas se sucederam em apenas sete anos, até que, em 555 a.C., Nabônides, nobre de origem arameia, assumiu o governo, no qual conseguirá manter-se até os acontecimentos do ano 539 a.C.
Contemporâneo de Ciro, este novo monarca unira-se num primeiro momento a ele, contra os medos. Todavia, depois, aliou-se ao Egito e à Lídia, na vã tentativa de frear a pujante expansão do rei persa.5
Vencido finalmente por Ciro, em Ópis, próximo ao rio Tigre, Nabônides fugiu, abrindo caminho para as tropas persas conquistarem, sem muito esforço, a Babilônia, em sua ausência governada por seu filho Baltazar, também mencionado nas Sagradas Escrituras (cf. Dn 5).6
Alguns dias depois, Ciro tomou conta da cidade, mas poupou seus habitantes, e inclusive prestou culto aos deuses locais. Sabe-se, pela Crônica babilônica, de sua preocupação em preservar os lugares sagrados e manter o bom andamento dos atos litúrgicos.
Chegara a hora da libertação
Os judeus exilados viam Ciro como um vingador da opressão sofrida, a qual foi manifestada com ênfase pelo salmista: “Às margens dos rios de Babilônia, nos assentávamos chorando, lembrando-nos de Sião. […] Ó filha de Babilônia, a devastadora, feliz aquele que te retribuir o mal que nos fizeste!” (Sl 136, 1.8). Já antes de sua chegada, os sucessos do rei persa haviam despertado neles a esperança de em breve realizar-se tal desejo.
Guiado por um Deus que ele não conhecia, Ciro transformou-se em instrumento d’Aquele que prometera a seu povo: “Chamo do Oriente uma ave de rapina, de uma terra longínqua o homem de meus desígnios. O que disse, executarei; o que concebi, realizarei” (Is 46, 11). No ano seguinte de seu domínio sobre Babilônia, não vacilou ele em autorizar o retorno dos judeus à Palestina e a reconstrução do templo de Jerusalém, decretando, ao mesmo tempo, que as populações das cidades nas quais eles moravam os ajudassem a restabelecer nele seu antigo culto.
“Assim fala Ciro, rei da Pérsia: o Senhor, Deus do Céu, deu-me todos os reinos da Terra, e encarregou-me de construir-lhe um templo em Jerusalém, que fica na terra de Judá. Quem é dentre vós pertencente ao seu povo, que seu Deus o acompanhe, suba a Jerusalém que fica na terra de Judá e construa o templo do Senhor, Deus de Israel, o Deus que reside em Jerusalém. Que todos os sobreviventes (de Judá) onde quer que residam, sejam providos pelos habitantes da localidade onde se encontrarem, de prata, ouro, cereais e gado, bem como de oferendas voluntárias para o templo do Deus que reside em Jerusalém” (Es 1, 2-4).
Chegara a hora da libertação. Deus havia decretado o fim do exílio de seu povo e quis, em seus insondáveis desígnios, servir-se de um rei pagão para aplicar sua misericórdia, assim como se servira de outro para castigá- -lo. Porque Ele é o Senhor da História, quem dá ou tira dos homens o poder, de acordo com seu beneplácito. O poderoso Ciro, aquele que chamava a vitória a seguir seus passos, punha os reis aos seus pés e, com sua espada, destruía os inimigos como poeira (cf. Is 41, 2), não foi, na realidade, senão um dócil instrumento nas mãos do Senhor Onipotente. (Revista Arautos do Evangelho, Fev/2012, n. 122, p. 36 à 38)