Texto de Eduardo Galvão
Quem escreveu o livro de Gênesis? A autoria da Bíblia é algo bem mais complexo do que a grande maioria imagina ser. Para estes, basta apanharem um exemplar da Bíblia, abrir no livro desejado, e procurar na introdução, onde normalmente encontramos algo sobre autor, data, composição, etc. É obvio, no entanto, que essa não é a verdadeira forma de se saber quem escreveu determinado livro bíblico. Além disso, quando se trata do livro de Gênesis, muitos ouvem na igreja que Moisés foi o escritor. Será mesmo?
A autoria dos livros modernos é muito fácil de ser estabelecida, pois basta olharmos a capa de um livro, ou mesmo algumas folhas iniciais, para obtermos todas as informações do mesmo. No entanto, no que diz respeito aos livros da antiguidade, a coisa não é tão simples assim.
No passado, o objetivo de se escrever livros não era status intelectual ou financeiro, como é hoje, na grande maioria dos casos, é lógico. As pessoas começaram a escrever para registrar suas tradições e seus mitos, e isso com o objetivo de preservá-los para a posteridade. O que hoje chamamos de “livro” era, na verdade, uma coleção de pequenas porções que eram colocadas juntas. Dificilmente, embora não impossível, alguém escrevia um livro na concepção moderna, com início, meio e fim, porque estamos falando do início da evolução literária.
Tome, como exemplo, um dos livros mais antigos da humanidade, Enuma Elish. (KING, 1998) Esse texto babilônico nos fala sobre o mito da criação do mundo pelos deuses. Seu texto foi composto de forma cuneiforme – rabiscos feitos em material rígido – em 7 tabletes de argila, contendo mais de mil linhas. Todos sabem que a escrita desse livro não foi exatamente como um escritor escreve um livro hoje. Esse “livro”, chamado de Enuma Elish, é uma coletânea de vários textos sumerianos que foram redigidos e, de certa forma, unificados e conhecidos hoje por esse nome. A autoria de Enuma Elish é atribuída à vários sacerdotes cultos em Babilônia que reuniram esses textos, embora o nome Nabubalatsuiqbi seja encontrado assinado neles por algum escriba.
Com o livro de Gênesis não foi diferente. A ideia que temos de que Moisés escreveu o Pentateuco, o que inclui o livro de Gênesis, é sustentada apenas pela tradição judaico-cristã. (YATES, 1990) Para estabelecermos quem foi o responsável por compor o primeiro livro da Bíblia, nós precisamos olhar o texto em si.
Uma característica notável nos livros que compõem a Bíblia é que eles são anônimos. (BRUCE, 1983) Ou seja, a grande maioria dos livros que compõem a Bíblia sagrada não menciona quem lhes fora o escritor. Se abrir a Bíblia em Gênesis e ler todos os seus cinquenta capítulos, observará que em momento algum encontramos o nome do autor. Não podemos confiar na tradição religiosa, pois a mesma está impregnada de supernaturalismo supersticioso, cujo objetivo é sustentar dogmas religiosos.
No entanto, não precisamos disso, pois temos o texto bíblico em si, que nos dará uma visão geral da mão quem escreveu o livro de Gênesis. O uso de métodos literários críticos para estudar o AT começou com a obra de Jean Astruc, médico do rei Francês Luíz XV. Em 1753, Astruct desenvolveu uma metodologia própria que, segundo cria ele, conseguia separar as fontes do texto de Gênesis. Ele passou a usá-la, então, para defender a autoria mosaica do primeiro livro bíblico. No entanto, isso logo mudaria.
Com o passar do tempo, métodos de análise crítica foram sendo aperfeiçoados e sendo empregados no estudos das Sagradas Escrituras. Com base nisso, eruditos de respeitadas capacidades conseguiram separar sistematicamente as fontes literárias que compunham o texto bíblico. Julius Wellhausen, estudioso alemão, que publicou sua principal obra em 1880, representa esse tipo de crítica da fonte.
A década de 1880 fora uma década fundamental no desenvolvimento da abordagem histórico-crítica para o Pentateuco, porque esta década viu a publicação do monumental Prolegômeno de J.H. Wellhausen zur Geschichte Israels (publicado em 1883, e em Inglês, em 1885). O trabalho de Wellhausen teve uma influência maciça, porque, pela primeira vez, foi capaz de associar a história do desenvolvimento do Pentateuco com a história do desenvolvimento da religião israelita de uma maneira que convenceu a maioria dos principais estudiosos da Europa, Inglaterra, e América, enquanto empurrava seus críticos (nomeadamente Hengstenberg e Delitzsch) às margens da erudição. (LONGMAN, 2009)
Vale ressaltar, como dito acima, que Wellhausen não foi o protagonista nessa história da Hipótese Documentária:
Aquela que é conhecida como a Hipótese Documentária, embora popularmente associada principalmente com o nome de Julius Wellhausen, não é o produto de um único indivíduo, mas de muitos. As primeiras tentativas sérias para desenvolver uma teoria de fontes escritas contínuas foram feitas na primeira metade do século XVIII - em relação apenas ao livro de Gênesis - por HB Witter e Jean Astruc. (WHYBRAY, 1994, p. 20)
Wellhausen arguiu que no que diz respeito ao texto de Gênesis, podemos separá-lo em quatro fontes principais: Javista (J), Eloísta (E), Deuteromista (D) e Sacerdotal (P).
Argumentou que essas fontes foram produzidas por escolas de pensamentos diferentes, às vezes conflitantes, em diferentes épocas. De acordo com esse esquema, os livros do Pentateuco só foram completados bem mais tarde... a tendência da década passada tem sido afastar-se da abordagem clássica da crítica da fonte e mudar para uma apreciação renovada da integridade literária e a completitude do texto (mesmo em vista do uso óbvio de algumas fontes). (PACOMIO, 1993)
Hoje, nós contamos com três testemunhas principais do texto genesiano para esse estudo e um subjacente: O Texto Massorético (MT), o Pentateuco Samaritano (PS) e o texto grego da Septuaginta (LXX) e os subjacentes textos de Qumran, com fragmentos de Gênesis. (HENDEL, 1995) Neste, o texto que mais podemos confiar, em termos de exatidão literária original, é o MT. (TOV 1981; McCARTER 1986; DAVILA 1989).
Temos inúmeras razões para crer que o livro de Gênesis foi escrito por múltiplos autores e, na verdade, essa é a visão de praticamente todos os eruditos modernos, teólogos liberais, literários e filólogos, com exceção dos fundamentalistas evangélicos, obviamente. O Comentário Bíblico NVI diz:
Essa teoria da composição do Pentateuco [o que está incluso o livro de Gênesis] talvez ainda seja considerada o consenso entre os eruditos do AT, mas muitas críticas sérias são levantadas contra ela... eruditos conservadores, entre eles autores protestantes, católicos e judeus, argumentam repetidamente que os critérios usados na escola na análise das diversas fontes do Pentateuco são altamente questionáveis. (CLINES 2009; colchetes explicativo meu)
Perceberam quem são os únicos eruditos que não concordam com a teoria das fontes, de que Gênesis teve vários textos de vários autores? Apenas os conservadores, que estão comprometidos com a fé e não com a verdade, como expliquei no artigo Teólogos Liberais ou Conservadores?
Mas, por que dizemos que o livro de Gênesis teve vários autores? Porque a composição do texto, em si, deixa isso muito claro.
Imagine que você é professor de história e pede para seus alunos escreverem uma redação sobre a colonização do Brasil. Essa redação, depois de reunida, se tornará em um livro de cinquenta capítulos. Você terá à sua disposição dez alunos, que irão compor, cada qual, cinco capítulos.
O primeiro escreveu os capítulos 1 ao 5, o segundo os capítulos 6 ao 10, o terceiro os capítulos 11-15 e assim por diante. Depois de concluída a escrita dos 50 capítulos, você reúne todas as folhas, faz uma encadernação francesa, põe um título na capa. Agora temos um livro rudimentar, composto por cinquenta capítulos e escrito por dez pessoas diferentes.
Entregue esse livro à um estudante de filologia, cujo objetivo, agora, é identificar quem escreveu e quantas pessoas estavam envolvidas na escrita do mesmo.
Para um olho atento, vários fatores iriam indicar que o livro não foi escrito por apenas uma pessoa. Primeiro, notar-se-ia que cada porção do livro – caps. 1-5, 6-10, etc – tem caligrafias diferentes. Depois, seria possível notar que cada porção tem uma precisão ortográfica diferente, uns mais bem escritos gramaticalmente do que outros. Seria, também, fácil notar que a forma de raciocinar difere de porção para porção, os caps. 11-15 tem um raciocínio muito diferente dos caps. 21-25. Outra coisa que seria notória era o vocabulário; alguns esbanjariam um maior repertório de palavras, enquanto outros seriam mais redundantes semanticamente.
Algo parecido ocorre com o livro de Gênesis. Eruditos desde o século XVIII têm observado inúmeras mudanças literárias dentro do primeiro livro da Bíblia. Tendo como base que os textos da antiguidade eram compilações de várias fontes, tendo em consideração as inúmeras diferenças literárias, esses estudiosos só poderiam chegar à uma única conclusão: O livro de Gênesis teve vários autores.
Existem inúmeras teorias muito bem elaboradas sobre as fontes usadas para se copilar o relato de Gênesis, teorias essas estabelecidas há séculos. Wellhausen, desde 1880, propôs como fontes para o livro de Gênesis, pelo menos quatro, como foi mencionado mais acima: Nós temos a fonte J (Javista), E (Eloísta) D (Deuteromista) e P (Sacerdotal) que, até hoje, tem sido a teoria mais plausível sobre a autoria do livro. (Ver também FRIEDMAN 1987; KNIGHT 1985). Alguns eruditos ainda acreditam que podemos acrescentar o Escritor das Promessas, que teria sido um escriba que acrescentava histórias sobre as inúmeras promessas divinas aos patriarcas, com o objetivo de sacralizar a história nacional de Israel. (SAND 2011; RENDTORFF 1977; BLUM 1984) Embora hoje haja várias teorias correlacionadas à de Wellhausen, todas, basicamente, giram em torno daquilo que mencionei no início do artigo: Os livros da antiguidade não eram fechados, sendo editados, revisados e acrescidos de conteúdo com o tempo. Lembre-se, naquele tempo não existiam direitos autorais!
Essas diferenças literárias que foram colocadas como J, E, D e P podem ser vistas em uma leitura atenta do texto hebraico original de Gênesis. No Caso da Javista, observamos que algumas porções isoladas de Gênesis chamam Deus apenas por YHWH, o nome pessoal de Deus. De uma hora para outra, Deus não mais é chamado de YHWH e sim por ELOHIM, como se fosse seu nome. Isso ocorre não porque em um belo dia Moisés decidiu parar de usar Yahweh e passou a usar Elohim, mas que durante o tempo em que os escribas colocaram todas as fontes em uma só, uniram vários autores, incluindo o que chamava a divindade de Yahweh e o que chamava sua divindade de Elohim.
Outro exemplo, em Gênesis 2:4 observamos uma expressão hebraica que é usada dez vezes no livro, תולדות (tôledôt), que significa “história”.
Nesta expressão, a palavra hebraica para “gerações” é tohledhóhth, melhor traduzida por “histórias” ou “origens”. Por exemplo, “gerações dos céus e da terra” dificilmente se enquadraria aqui, ao passo que “história dos céus e da terra” tem sentido. (Gên 2:4) Em harmonia com isso, a versão alemã Elberfelder, a francesa Crampon e a espanhola Bover-Cantera são versões que usam o termo “história”. Não há dúvida de que, assim como os homens estão hoje interessados num registro histórico exato, assim também estiveram desde o começo. (Biblioteca Bíblica)
A palavra traduzida como “gênesis” é toledoth no hebraico, que pode referir-se às fontes históricas de que Moisés dispunha. (SHEDD)
A expressão תולדות (tôledôt) indica que cada porção é parte de uma fonte literária distinta, que, posteriormente, foi colocada em conjunto com outras “histórias”, sendo editadas, formando o livro que hoje conhecemos por Gênesis. Um outro exemplo pode ser visto em Gênesis cap. 1. Neste, temos o relato bíblico do início da história, quando Yahweh criou o céu e a terra. Durante todo esse capítulo, observamos a sequência de eventos que descrevem a criação de Deus durante seis dias, sendo o sétimo Seu descanso. Não obstante, quando abrimos Gênesis cap. 2, notamos no versículo 4 em diante as palavras: “Esta é a história dos céus e da terra quando foram criados; quando Yahweh Deus o criou”, e dai em diante passa a repetir a história da criação, sendo que agora com uma ordem diferente e com detalhes diferentes. Isso aponta, sem dúvida alguma, para o fato de que Gênesis cap. 1 e cap. 2 se originam de duas fontes literárias distintas sobre a criação do universo. Esses relatos foram colocados juntos, editados por séculos e séculos, até chegar à nossas Bíblias modernas. Outra diferença é comentada por Russell Shedd (2007):
No Capítulo 2, o pensamento relativo à criação não é mais o que domina. No capítulo 1, o homem aparece como sendo a finalidade e a coroa da criação; no capítulo 2, ele aparece como dando início à história.
Ainda sobre as várias diferenças literárias de Gênesis, lemos o seguinte:
Os gêneros literários também são muitos, com a presença até mesmo de elementos literários mitológicos e lendários reinterpretados javisticamente: gêneros sapienciais, genealogias, oráculos de salvação, narrações históricas, pequenos poemas épicos, orações hínicas, bençãos, composições redacionais. (PACOMIO, 1993)
O fato de que a tradição judaico-cristã tenha atribuído à Moisés a escrita do livro de Gênesis nada prova em absoluto. Muitos sites e livros cristãos citam alguns versículos bíblicos do NT como prova de que os judeus sempre creram que Moisés fora seu escritor. Mas, será que a tradição judaica pode ser seguida cegamente? Interessante que, na versão mais nova da Enciclopédia Judaica, o verbete MOISÉS foi removido, pois hoje é quase consenso que essa figura bíblica nunca existiu (Ver notícia Moses Never Existed), pelo menos não como é descrito no Antigo Testamento.
Não vou esboçar aqui minha opinião sobre a existência de Moisés, até porque estou esperando ansiosamente o lançamento de um livro sobre a existência de Moisés apenas como mito, chamado Did Moses Exist? The Myth of the Israelite Lawgiver, de Acharya. Mas, adianto que, de forma simples e objetiva, acredito que algum personagem histórico da Mesopotâmia possa ter dado origem ao personagem que conhecemos como Moisés, mas decididamente não como se é apresentado na Bíblia.
Ora, a tradição judaica diz muitas coisas e não só por isso a aceitaremos como verdade única e absoluta. O fato de Moisés ser mencionado como o Legislador do Antigo Testamento, e seja citado no NT com a sua Lei Mosaica, não quer dizer que isso seja historicamente exato. Devemos deixar que o texto bíblico de Gênesis fale por si, afinal, essa é a própria lei exegética que seguem os fundamentalistas, embora nisso, estejam certos, de fato. Assim, além do livro de Gênesis em nada falar sobre Moisés ser seu escritor, ainda encontramos a grande possibilidade de sua inexistência, bem como as inúmeras diferenças literárias, o que mostra claramente que o texto contém a mente de várias fontes anteriores e não apenas de uma.
Dito de forma simples: Escribas durante o período do exílio em Babilônia (séc. VII a.C), quando começaram a escrever o Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia moderna. (BADEN, pp. 305–313) Esses escribas juntaram todas as fontes, de vários autores que foram passados de geração em geração, editaram e moldaram dentro de sua própria interpretação cosmogônica, criando o que hoje chamamos de livro de Gênesis. O fato de Gênesis possuir muitas semelhanças com Enuma Elish, demonstra não apenas a influência babilônica e sumeriana sobre a cosmovisão judaica, mas também sobre a composição de seus livros sagrados.
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